segunda-feira, 17 de março de 2014

Cuidar de nosso templo é fazer a reforma interior

Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o espírito de Deus habita em vós?
(Paulo, Coríntios 1, 3:16)

Nesta carta Paulo utiliza uma imagem figurada comum nas Escrituras que é a ideia de que nosso corpo é um templo.

Em uma dessas passagens, os evangelhos contam sobre a entrada de Jesus no templo em Jerusalém.  Os textos retratam a irritação do Mestre com o comércio que havia sido instalado no local. Afinal, o ambiente deveria ser de uso exclusivo para a oração e de ligação das pessoas com o plano espiritual.

A mais simbólica descrição deste momento é a de João, o discípulo mais querido e o último dos evangelistas a escrever sobre a passagem de Jesus na Terra.

A Páscoa dos judeus estava próxima, e Jesus subiu para Jerusalém. No Templo, Jesus encontrou os vendedores de gado, ovelhas e pombas, e os cambistas sentados. Então fez um chicote de cordas e expulsou todos do Templo junto com as ovelhas e os bois; esparramou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas. E disse aos que vendiam pombas: "Tirem isso daqui! Não transformem a casa de meu Pai num mercado." (2:13-17)

A chave para compreensão deste texto vem a seguir em um diálogo ocorrido entre Jesus e os judeus logo após o incidente no templo:

Então os dirigentes dos judeus perguntaram a Jesus: "Que sinal nos mostras para agires assim?"Jesus respondeu: "Destruam esse Templo, e em três dias eu o levantarei." Os dirigentes dos judeus disseram: "A construção desse Templo demorou quarenta e seis anos, e tu o levantarás em três dias?" Mas o Templo de que Jesus falava era o seu corpo.

Se a descrição de João era simbólica e o templo corresponde ao nosso corpo, como interpretar essa passagem?

Para muitos estudiosos, como o monge alemão Alselm Grün, a ideia de mercado sugere barulho, movimento, dispersão.  Será que internamente não somos ruidosos?

Será que não nos preocupamos demais com as coisas materiais retratadas na passagem pelas moedas e os cambistas?

Quantas vezes não nos pegamos em disputas, rivalidades, brigas e acessos de raiva, ou em mostrar virilidade, como acontecem com os touros antes de serem castrados e se tornarem bois?

O nosso comportamento interior permite que sejamos livres ou somos conduzidos, como ovelhas, por nossas sensações mundanas?

Temos controle sobre nossos pensamentos ou permitirmos que eles escapem e voem com facilidade e sem rumo, como as pombas?

A realidade é que nosso interior se assemelha muito ao mercado livre montado no templo em Jerusalém.

E como colocar um pouco de ordem nesta balbúrdia?

João é claro neste sentido. Se nos aproximarmos dos ensinamentos de Jesus, poderemos fazer nossa reforma interior com mais segurança e controle. O Nazareno vai nos ajudar a afastar o que nos prejudica.

Por isso que Paulo em sua carta aos Coríntios mencionou a questão simbólica do templo. Muitas vezes esquecemos que temos o nosso 'Deus interior 'e que precisamos cultuá-lo em um ambiente menos inóspito e barulhento com nossas preocupações e comportamentos negativos. Só assim nos tornaremos pessoas melhores e mais elevadas espiritualmente.

Emmanuel, o famoso guia espiritual de Chico Xavier, é preciso ao dizer que essa limpeza, a nossa tarefa de reeducação, é difícil e que vamos conseguir atingir esse objetivo com muito esforço e dificuldade: “Para que a luz divina se destaque na treva humana, é necessário que os processos educativos da vida nos trabalhem no empedrado caminho dos milênios”. E conclui: “Se sabemos que o senhor habita em nós, aperfeiçoemos a nossa vida a fim de manifestá-lo”. Então, vamos começar a limpar agora o nosso templo?

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Livro revela lado humano e menos mítico de Kardec


Biografia mostra os dilemas e angústias do codificador do espiritismo
 durante o trabalho de revelar a nova doutrina ao mundo

A história de Allan Kardec, francês que há 156 anos colocou no papel as instruções dos espíritos e organizou a doutrina espírita, merecia ser resgatada e contada com uma roupagem mais moderna. O jornalista Marcel Souto Maior estava com esta ideia na cabeça desde que escreveu As Vidas de Chico Xavier, que posteriormente serviu como base para o filme a respeito do mítico médium mineiro.

A tarefa era não só apresentar este francês nascido em Lyon, em 3 de outubro de 1804, mas desvendar o homem por trás do mito. Contar, prioritariamente, o intenso período de 13 anos em que Kardec, um cético assim como Marcel, compreendeu a importância da comunicação dos espíritos, iniciou o trabalho de codificação que resultou em cinco livros e arregaçou as mangas para consolidar e defender a recém-nascida doutrina.

Graças a isso, o perfil que emerge de Kardec, a Biografia é o de um homem com angústias e dilemas, centralizador e envolvido em desgastantes embates.

- Queria entender a transformação do professor cético a missionário de campanha. O que deu a ele tanta certeza sobre a existência e influência dos espíritos? A biografia é a história desta conversão. Uma saga pontuada por altos e baixos, com razão e emoção, surpresas e decepções, fraudes e revelações”, explicou o jornalista à imprensa no lançamento da obra.

A biografia aponta ainda que, assim como o famoso médium brasileiro, o precursor do espiritismo teve seu tempo totalmente tomado pelas demandas vindas do outro lado do véu. Os benfeitores espirituais não brincam em serviço e exigem dedicação total de seus parceiros encarnados.

Mas pelo menos os amigos no invisível são sinceros e avisam antes o tamanho da missão de cada um dos escolhidos.

- Caberá a você organizar e divulgar uma nova doutrina, capaz de revolucionar o pensamento científico, filosófico e religioso. Não esqueças que podes triunfar, como pode falir. Neste último caso, outro te substituirá...Previno-te que a tua missão é rude e não vai bastar publicar alguns livros e ir para casa. É necessário que te mostres no conflito, esclareceu o Espírito da Verdade, o mentor que iria acompanhar e auxiliar Kardec na longa caminhada em direção à nova doutrina.

Da mesma forma como Chico, Kardec topou o desafio. Em 1856, aos 54 anos, o professor  Hippolyte Léon Denizard Rivail iniciava a jornada de transformação que o levaria a se tornar Allan Kardec.
Pelas páginas escritas por Marcel, as mesas girantes, os diversos e controvertidos espetáculos mediúnicos na época, as irmãs Fox e os casos de materialização ganham vida. O leitor é transportado para aquele efervescente meio do século 19. Percebe ainda como a manifestação dos espíritos era assunto popular na sociedade francesa.

No entanto, o que para muitos era apenas diversão, para Kardec aquelas ações estranhas e, de certo modo, incompreensíveis, sugeriram algo a mais:

- Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente. O poder da causa corresponde à grandeza do efeito, analisava Rivail após observar com espanto as comunicações dos espíritos por meio das mesas girantes e das pancadas que respondiam às perguntas dos encarnados.

A biografia acompanha as conversas iniciais de Kardec com os espíritos.  Apresenta quem foram as primeiras médiuns que ajudaram o professor no contato com a espiritualidade, já que o codificador não possuía esta habilidade mediúnica.

No livro, a história é contatada de forma linear e objetiva, sem ser laudatória. Marcel mostra com muitas informações recolhidas de suas pesquisas e quatro viagens a Paris as angústias e temores de Kardec pelo tamanho e complexidade da tarefa que tinha pela frente.

Um dos medos do francês era ser enganado pelos espíritos. Daí a obsessão de fazer a diversos médiuns e espíritos as mesmas perguntas e garimpar a concordância das respostas. Afinal, para ele, era melhor rejeitar 10 verdades a publicar uma mentira.

- Observar, comparar e julgar, essa a regra que constantemente segui, dizia o racional Rivail.

Além de apresentar o Espírito da Verdade, mas sem revelar sua identidade, o autor da biografia faz uma interessante contextualização das outras entidades que colaboraram com Kardec, como São Luis e Erasto, de importantes médiuns, como a jovem Ermance Dufaux, e de personalidades da época que também mantinham seus contatos com o além, como o escritor Victor Hugo.

A biografia traz ainda o lado centralizador e obsessivo de Kardec. Temeroso em colocar a recém-nascida doutrina em perigo, ele decidia sozinho não só o que iria publicar nos livros, mas também como a sociedade espírita fundada por ele deveria agir. Dentro do mesmo princípio, ele mesmo era quem respondia as polêmicas surgidas, editava praticamente sozinho a Revista Espírita e ainda encontrava tempo para despachar a volumosa correspondência.

Justamente por ser um controlador nato, Kardec temia pelo futuro da doutrina quando desencarnasse. Marcel aponta as preocupações do codificador em saber quem seria o seu sucessor. Os espíritos, contudo, não revelaram o nome. Apenas diziam que esta pessoa já existia.

Marcel resolveu também criar este suspense no leitor e não menciona em nenhum momento a obra de Léon Denis, outro francês e que foi a grande referência à doutrina espírita após o falecimento de Kardec, ocorrido em 31 de março de 1869. Com sua oratória envolvente e livros que explicavam de forma didática o espiritismo, Denis consolidou os princípios da doutrina e a duras penas unificou o movimento.

Curiosamente, um mês depois que Denis desencarnou, em 12 de abril de 1927, Chico Xavier, aos 17 anos, fazia o primeiro contato com o espiritismo. Em junho, ele fundava o centro espírita Luiz Gonzaga, em Pedro Leopoldo, e, em 8 de julho, o médium mineiro participava de sua primeira psicografia. Enquanto a doutrina ganhava alento no Brasil, perdia força e ímpeto na França.

Apesar de não expor estes fatos no texto, Marcel traz outros casos curiosos, como a revolta das primeiras médiuns que levou ao rompimento com Kardec por não terem os nomes publicados no Livro dos Espíritos. Ilustra ainda o surgimento de cada um dos exemplares do Pentateuco espírita e detalha as diversas polêmicas em que Kardec e o espiritismo estiveram envolvidos na época. Uma história envolvente e que em breve deverá também ser atração nos cinemas.

Ficha técnica

Livro: Kardec, a Biografia
Autor: Marcel Souto Maior
Editora: Record
Número de páginas: 322

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A difícil arte de fazer estrelas trabalharem em equipe


Não deve ser fácil ter um monte de estrelas na equipe e não ver o time funcionar na partida. Mike Brown, que até o início de novembro era o técnico do Los Angeles Lakers, que o diga. Uma dos principais franquias do basquete americano teve um dos inícios de temporada mais desastrosos da história. Venceu apenas uma partida em 13 disputadas entre a pré-temporada e o início do campeonato. Como resultado, e lembrando um pouco a realidade no futebol brasileiro, o técnico caiu.

E caiu porque, segundo os críticos, não teria conseguido montar uma equipe competitiva, apesar de contar com veteranos como Kobe Bryant e Steve Nash ou estrelas como o espanhol Paul Gasol e o recém-contratado Dwight Howard. No papel, um timaço. Em quadra, saco de pancada.

Misturar no caldeirão de uma equipe um monte de estrelas não necessariamente transforma o time em um supercampeão. Que o diga o Real Madrid quando iniciou a temerária jornada dos Galacticos. No início dos anos 2000, contratou Zinedine Zidane, Ronaldo, Figo, Roberto Carlos e Beckham. E os resultados foram pífios. E não adiantou trocar de técnico.

No Brasil, tivemos uma experiência parecida. Em 1995 o Flamengo apostou no que se chamou na época de o melhor ataque do mundo.  Contratou Romário (que havia sido campeão pelo Brasil na Copa de 94), Sávio (a grande revelação na época) e Edmundo (no auge da carreira). Na prática, funcionou? Não. Outro fiasco. E a equipe só veria um título em 96, o Estadual do Rio de Janeiro, e já sem contar com Edmundo.

Óbvio que em cada caso mencionado existem várias explicações possíveis para os maus resultados.  Mas acredito que existe um denominador comum em todas elas. O Ego. Saber lidar com esta característica na personalidade de cada um de nós é uma arte. E são poucos os líderes que conseguem tirar o máximo proveito de suas estrelas.

Com o Ego fora de controle costumam vir todas aquelas emoções que os espiritualistas e filósofos tentam há séculos domesticar no ser humano: a inveja, a vaidade, a raiva, o ciúme, a mágoa, o despeito, o orgulho, a ansiedade... Enfim, um Eu fora da jaula e sem limites. Imagine essas características em diferentes gradações entre os atletas de uma equipe.  Para domar este quadro, você não precisa de um técnico e sim de psicólogo.

Talvez esta seja a resposta para um case de sucesso. Um não, dois. Phil Jackson é um dos mais premiados treinadores de basquete dos Estados Unidos.  Foi campeão seis vezes pelo Chicago Bulls, na época de Michael Jordan, Scott Pippen e Dennis Rodman, e outras cinco com o Los Angeles Lakers, de Shaquille O´Neal e Kobe Bryant .

Budista, adepto da meditação e com cursos de psicologia na bagagem, Jackson conseguiu tirar o máximo das equipes que dirigiu. E convenhamos que não deve ter sido  fácil fazer o então bad boy Dennis Rodman jogar em equipe com o Chicago Bulls. Na prática, ele fazia os jogadores meditarem antes dos treinos e, no dia a dia, repetia para eles, como um mantra, frases como “O poder do nós é mais poderoso que o do Eu”. A ideia era esvaziar a mente das estrelas, acalmá-las e fazê-las jogar como equipe.

Com o sucesso, Jackson esmiuçou esta sua técnica em vários livros. Um deles chegou a ser editado no Brasil com o nome de Cestas Sagradas.  Em um trecho ele explica que o que ‘contamina a mente é o nosso desejo de conseguir que a vida se comporte segundo a nossa concepção particular de como as coisas têm que ser, em contraposição ao que realmente são..Os pensamentos por si só não são um problema. É o nosso desesperado apego a eles e nossa resistência à realidade que nos causa a angústia ’.

Outro ponto de destaque é a sua atitude compassiva com os jogadores. Ele não fazia o tipo treinador austero e déspota. Ao contrário, procurava se identificar e entender o que se passava com cada atleta. “Isso fazia com que o jogador se sentisse menos ansioso, mais feliz, já que alguém estava entendendo o que ele estava passando. A partir daí havia um efeito multiplicador na equipe, pois inspirava outros jogadores a responder amavelmente e a ser mais conscientes das necessidades de uns e outros”.

Não por acaso ele ganhou o carinhoso apelido de Zen Master entre os atletas. Considerado um dos 10 maiores técnicos da história, Phil Jackson se aposentou em 2011 no próprio Lakers. Curiosamente, enquanto escrevo este artigo, leio no New York Times que a franquia da Califórnia quer de volta o velho mestre zen para dirigir a equipe e colocar ordem no garrafão. Quem sabe não seja mais uma oportunidade para o budista tirar o máximo das estrelas?

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Megaupload, Pablo Escobar e o marketing furado

O fechamento do site de compartilhamento Megaupload e a prisão de seu proprietário Kim Schmitz, conhecido no mundo virtual como Dotcom, mostram como está ficando perigosamente cada vez mais similar a criminalização na internet com o falido combate ao narcotráfico. Se no passado tínhamos traficantes como Pablo Escobar ou Escadinha, para lembrar apenas de dois, na área virtual já tivemos o Mininova e agora o Megaupload. Rei morto, rei posto. E vai continuar sempre assim até que se discuta o óbvio: por que esses "serviços" são tão procurados? A resposta é óbvia: porque existe demanda.
     Não vou aqui fazer apologia para a liberação das drogas. Pode ser um bom tema para outra oportunidade. O que eu quero neste post é analisar o motivo destes sites de compartilhamento serem tão acessados. Tenho uma hipótese de que não se trata de conseguir apenas um conteúdo de graça, mas conseguir este conteúdo. Explico. A BBC tem várias excelentes séries de TV. Uma delas é sobre Sherlock Holmes, que no início deste ano teve sua segunda temporada (foram três episódios). Pois bem. Até hoje nenhum canal de TV no Brasil se dignou a mostrar a primeira temporada que foi ao ar há um ano.
     Outro exemplo. O filme Moneyball, com Brad Pitt, já estreou há meses nos Estados Unidos, mas estava com sua previsão de lançamento marcada para fevereiro aqui no Brasil. Previsão porque a distribuidora ainda não tinha se convencido de que a temática do filme agradaria ao público brasileiro, pois trata-se do universo do beisebol. Nem vou aqui mencionar com detalhes as séries de televisão que já terminaram há mais de um ano e que só agora chegam aos canais abertos. 
     No século passado, nós consumidores tínhamos que nos sujeitar e a nos resignar a esta lógica do marketing das grandes corporações. Mas com a chegada da internet este jogo, e muitos outros, tiveram suas regras mudadas drasticamente. Graças aos sites de compartilhamento tenho acesso a todos estes conteúdos de que sou privado por algum gênio do marketing que acredita poder decidir o que posso ou não assistir diante de suas conveniências comerciais.
     Estes imperadores romanos vivem seu ocaso por não conseguirem mudar seus próprios paradigmas. E o que fazem? Vão com unhas e dentes bater na porta de governos, polícia e judiciário para mover o poder estatal no combate do que eles qualificam de crime ao direito autoral ou pirataria. E, como demostram o fechamento do Megaupload e o projeto de lei nos EUA para cercear draconianamente o uso da internet, os dinossauros estão conseguindo expressivas vitórias. A maior de todas é a de empurrar o Estado para este jogo da criminalização, como o combate às drogas nos jogou no passado neste pântano atual aparentemente sem saída.
     E qual seria a solução óbvia para impedir a proliferação da pirataria? Disponibilizar o conteúdo oficialmente por meio dos sites das empresas que produzem este material, como BBC, Sony, Warner, FOX, HBO, etc, ou a criação de um portal que agregaria tudo isso em um só lugar. Obviamente não seria oferecido de graça, mas o serviço poderia obedecer a mesma lógica das televisões a cabo: com uma assinatura mensal você tem todo o conteúdo possível que quiser sem restrição. 
     Não parece ser algo impossível de ser feito. A questão é disposição para investir neste novo mundo e criar outros paradigmas. No entanto é muito mais confortável e previsível querer que os modelos de negócio continuem do mesmo jeito como eram no século 20. Com o bônus de ter a polícia de graça para combater os criminosos cibernéticos. Até quando vamos aceitar passivamente este jogo furado?
     
       
    

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Religião para ateus - uma resenha

É curioso como de tempos em tempos sempre aparece alguém que faz algo de maneira inusitada. É um talento que pode construir catedrais, descobrir uma vacina, desvendar leis da natureza ou até mesmo fazer jogadas geniais em um campo de futebol. Pode ser um exagero da minha parte, mas gosto de colocar o filósofo suíço Alain de Botton nesta categoria. Há tempos acompanho seus livros e documentários (no marcador filosofia deste blog você poderá encontrar muitos textos baseados em suas explicações). E o que faz Alain de Botton de tão especial? Ele é claro nos seus ensinamentos, didático, bem articulado e vê a filosofia não como algo inatingível para seres mortais como eu e você. Ao contrário, ele traz para o nosso cotidiano pensatas de antigos filósofos que nos ajudam a compreender as nossas angústias nesta agitada vida moderna.
     Neste seu caminho inusitado, Alain lançou recentemente Religião para ateus (editora Intrínseca). O livro é de leitura fácil, como é de praxe em seus trabalhos, mas sem cair no superficialismo. Ele tem a habilidade de abordar conceitos complexos ou ideias sofisticadas com uma naturalidade como se tivesse conversando com amigos em um almoço.
     E a proposta da obra é bem instigante. Alain analisa as religiões e procura encontrar aspectos que possam ser adaptados com sucesso em uma vida secular. A angústia dele é que a religião de uma forma ou de outra supre com muita competência necessidades interiores de cada ser humano. O problema é que se você é um ateu, como o autor,  qualquer menção à igreja é logo vista com desdém. E desta forma essas pessoas se distanciam de valores morais e filosóficos importantes. Como ele explica, "as religiões conseguiram combinar teorias sobre ética e metafísica com um envolvimento prático em educação, moda, política, viagem, hospedaria, cerimônias de iniciação, edição de livros, arte e arquitetura - uma gama de interesses que eclipsa a extensão de conquistas até mesmo dos maiores e mais influentes movimentos e indivíduos seculares da história".
     A partir deste mote ele vai costurando seu livro em capítulos como Comunidade, Gentileza, Educação, Ternura, Pessimismo, Perspectiva, Arte, Arquitetura e Instituições. Em cada seção ele surpreende o leitor com análises de como a religião foi competente para influenciar cada um destes aspectos abordados e as dificuldades que a vida secular mostra em dar respostas com a mesma eficiência.
     Um dos casos analisados é sobre a educação. Botton afirma que no início do século 19 havia o "sonho de que a cultura pudesse ser tão efetiva quanto a religião em sua capacidade de guiar, humanizar e consolar". Em vez de usarmos passagens bíblicas nos ensinamentos morais, chamaríamos as máximas de Marco Aurélio ou as óperas de Wagner já que as "lições éticas da religião se espalham pelo cânone cultural". Mas isso não deu certo. E por que? Botton tem uma teoria interessante. Para ele as "universidades conquistaram uma competência sem paralelos na transmissão de informação factual acerca de cultura, porém elas permanecem de todo desinteressadas em treinar estudantes para usá-la como repertório de sabedoria". Em outras palavras, como viver não faz parte do currículo escolar.
     Botton propõe uma solução para corrigir este problema. As universidades precisariam alterar seu currículo não mais para que os alunos acumulassem informação, mas usar o conteúdo cultural para iluminar a vida deles em vez de estimulá-los a atingir objetivos acadêmicos. Desta forma, "os romances Anna Karenina e Madame Bovary seriam alocados em um curso sobre tensões do casamento...Uma universidade interessada nas verdadeiras responsabilidades dos artefatos culturais dentro de uma era secular estabeleceria um Departamento de Relacionamento, um Instituto de Morrer e um Centro para o Autoconhecimento".
     Tudo isso pode dar a impressão de ser uma grande viagem do autor. No entanto, a partir deste exercício de imaginação vemos de maneira objetiva, muitas vezes cruel, como é cada vez mais premente repensar  como recebemos e distribuímos o conhecimento. E como estas falhas nos distanciam de valores éticos e morais e do necessário autoconhecimento. Itens fundamentais para termos uma vida melhor, como as religiões sempre souberam e foram tão eficazes ao longo dos milênios em nos ensinar. Enquanto este novo mundo de Botton não surge, termino a leitura imaginando se não valeria a pena olhar com menos preconceito para este aspecto das religiões e encontrar o conforto necessário que este mundo moderno e tecnologicamente avançado nos nega.

Saiba mais
Outros posts sobre Alain de Botton

Palestra de Alain de Botton no TED (com legendas em português)

Epicuro e a felicidade (legendado)

Sócrates e a autoconfiança (legendado)

Sêneca e a raiva (legendado)

Montaigne e a autoestima (legendado)

Schopenhauer e o Amor (legendado)
 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Os famintos

De todo o  Sermão da Montanha esta frase talvez seja a mais enigmática: "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos" (Mateus 5:6). Na transcrição mais coloquial da Bíblia da CNBB, "Felizes os que têm fome e sede da justiça, porque serão saciados.". O que Jesus quis dizer com isso? E lá fomos nós atrás de informações que pudessem elucidar este enigma.
      Uma possível chave é olhar pelo lado reverso da questão, ou seja, a injustiça. E neste quesito o nosso planetinha azul é bem pródigo. Podemos sofrer injustiças em muitos níveis. Em nosso dia a dia, por exemplo, encontramos terreno fértil para a falta de justiça nas relações comerciais, na convivência com colegas de trabalho, vizinhos e familiares. Muitas vezes ficamos perplexos e impotentes para reagir a uma situação negativa como essa.
     Recorrer à Justiça em qualquer parte do mundo não é garantia de ser atendido. Invariavelmente você precisa ter bons advogados para conseguir ser competitivo neste mundo do direito. E para isso você precisa de dinheiro para pagar os honorários. Quem não tem uma reserva financeira, fica ao relento e com uma causa perdida.
     Outra forma de injustiça é a acumulação de riqueza nas mãos de uns poucos privilegiados. Uma grotesca concentração de renda. Um dos vários indicadores nessa área mostra que a renda média dos 20 países mais ricos do mundo corresponde a 37 vezes a renda dos países mais pobres. Outra afronta são os valores pagos a presidentes de empresa que muitas vezes passam das 200 vezes o menor salário. Fora os bônus obtidos de forma suspeita como a crise de 2007 escancarou para o mundo. Empresas quebradas que artificialmente manipulavam suas contas para parecer que havia lucro em vez de prejuízo e assim garantir um polpudo pagamento extra no final do ano.
     E devemos ficar passivos vendo tanta injustiça? Apesar de não podermos fazer muita coisa, precisamos manter este espírito de inconformidade. Afinal, felizes os que têm fome e sede de justiça, como falou Jesus. No livro, Bem-aventuranças - caminho para uma vida feliz, o monge Anselm Grüm explica que todos nós precisamos lutar para sempre fazer o que é certo. "Tal batalha pode ser cansativa, mas também torna felizes aqueles que, do fundo do coração, se comprometem com a causa", afirma Grüm.
     Ele alerta, porém, que o desejo por justiça aqui na Terra permanecerá incompleto. No entanto, citando o antigo teólogo místico Gregório de Nissa, a procura por justiça vai tornar o ser humano interiormente satisfeito. E da busca incessante surgirá a experiência do que é bom, do que é certo, de como viver, e se esforçar por uma vida feliz.
     Para quem espera alguma punição para os causadores das injustiças, o Espiritismo traz um alento. No livro, Os quatro sermões de Jesus, o autor Paulo Alves Godoy afirma que "os que se tornaram instrumentos das injustiças, serão defrontados com duros revezes espirituais" quando desencarnarem. Pela lei de causa e efeito, deverão reparar o que fizeram em vidas futuras sob a forma de expiação.
     Seja como for o importante é ter uma vida correta e justa e lutar para que o nosso mundo seja um pouco menos injusto. Daí vem a bem-aventurança.


Leia também
Bem-aventuranças: o sermão
Os pobres de espírito
Os tristes felizes
Os amáveis

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Religião para ateus

Um dos filósofos atuais que mais gosto é o suíço Alain de Botton. Quem acompanha este blog sabe que em  muitos posts menciono as ideias dele. É só clicar no marcador filosofia para ver alguns destes textos. Um deles, Schopenhauer e o amor, é um dos mais acessados por aqui. Gosto dele porque ele é simples, direto e sem afetação em suas explicações. E o melhor de tudo: foca a filosofia no dia a dia das pessoas. Tenta trazer respostas para nossas angústias, medos, amores, raivas, inseguranças etc. É a filosofia usada para melhorar o nosso interior e para que possamos viver com mais tranquilidade. Os espíritas chamariam isso de reforma íntima e usariam os ensinamentos de Jesus como norte. Botton é ateu e usa os filósofos para ir nesta mesma direção.
     Ele esteve no Brasil por esses dias para o lançamento do livro Religião para Ateus, que ainda não tive a oportunidade de ler, mas em breve vou fazer isso e postar algumas considerações por aqui. Bom, o interessante é que ele concedeu uma entrevista para a revista Exame que gostaria de compartilhar com vocês. Um bate papo com boas perguntas e ótimas respostas. Coloquei a íntegra abaixo. Espero que gostem.


“Nós somos uma espécie ingrata”, diz filósofo Alain de Botton

Em entrevista a EXAME.com, o filósofo do cotidiano falou sobre o desejo de status e o paradoxo do sucesso material

São Paulo – Sem frases altamente complexas ou raciocínios muito abstratos, o filósofo suíço Alain de Botton expõe as ideias que tem construído ao longo de quase duas décadas de carreira. Ele popularizou a filosofia com seus livros, focado nos problemas do cotidiano e sempre recorrendo a uma bagagem de diversos pensadores e artistas.
Uma delas é “Como Proust pode mudar sua vida” (1997), onde o autor usa os ensinamentos de Marcel Proust para ajudar o leitor em campos como o amor, o sofrimento, a felicidade, a arte e a amizade. Já na obra “Desejo de Status” (2004), Alain de Botton fala sobre a ansiedade de ter status e riqueza, e da frustração que isso causa, quando o sucesso não é alcançado.Nesta semana, de Botton veio ao Brasil para participar do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento e para lançar sua obra mais recente, “Religião para Ateus” (2011). No livro, ele fala sobre os ensinamentos que as religiões podem dar mesmo àqueles que não possuem uma crença. Antes, o filósofo escreveu outras nove publicações que foram best-sellers.
Diferentemente da ambição, que é uma vontade de crescer para satisfação pessoal, o “desejo de status” se origina da preocupação com o que os outros vão pensar. As consequências podem ser várias, desde a riqueza até o suicídio. É exatamente sobre esse assunto que o filósofo falou a EXAME.com. Confira trechos da entrevista.
EXAME.com: De que depende a felicidade no trabalho?
Alain de Botton: 
Felicidade no trabalho é muito complicada. Eu acho que ela basicamente depende de algo dentro de você. Algo precioso e importante, uma habilidade, um talento, um interesse sendo conectados com algo no mundo que gera dinheiro. Na maior parte do tempo, as coisas pelas quais a gente realmente se importa não fazem dinheiro. E as coisas que fazem dinheiro nos matam por dentro. Nós não gostamos de fazê-las. Esse é o problema do capitalismo. A maior parte do dinheiro no mundo moderno é gerada em empresas que não são tão interessantes para nosso espírito, para nossas mentes
EXAME.com: As pessoas estão mais infelizes com suas carreiras e seu trabalho atualmente em relação às gerações de décadas atrás?
de Botton:
 Esse é definitivamente o caso em que quanto mais você espera da vida, mais a vida tem que dar, do contrário, você fica infeliz. É o paradoxo do sucesso material. À medida que a sociedade fica mais bem sucedida, as expectativas das pessoas aumentam e, por isso, elas ficam ingratas sobre coisas que seus pais ou seus avós ficariam muito agradecidos. Nós somos uma espécie ingrata. Nós sempre pensamos naquilo que nós não temos. Não se trata de não tentar conseguir mais, mas, na medida em que tentamos conseguir mais, nós deveríamos sempre lembrar que isso vai entregar apenas uma pequena porcentagem da felicidade que nós imaginamos. Nós devemos estar prontos para isso.
EXAME.com: O senhor diz que meritocracia não é 100% eficiente. Na sua opinião, há um modo melhor de avaliar as pessoas e suas competências, que possa reduzir o “desejo de status”?
de Botton: 
Nós deveríamos sempre tentar criar um mundo meritocrático, um mundo onde, se você tiver talento e energia, você deveria conseguir subir. O problema é que nós devemos sempre reconhecer que isso é um sonho do mundo perfeito. Porque todos nós somos mais talentosos, mais interessantes, mais habilidosos do que o mundo poderá saber, que nós poderemos saber um dia. O sonho é a gente poder pegar tudo que é bom em nós e fazer dinheiro com isso. Isso é uma coisa que apenas 0,001% da população pode um dia fazer. Nós precisamos reconhecer isso, falar sobre isso e nos entristecer com relação a isso, juntos, em uma sexta-feira à noite após o trabalho.
EXAME.com: As redes sociais, como Facebook e Twitter, que permitem que as pessoas se tornem webcelebridades, aumentam o “desejo de status”? O que o senhor pensa sobre esse assunto?
de Botton:
 As redes sociais oferecem às pessoas uma maneira de ter status fora do sistema financeiro. Porque muita gente acessa o Twitter, por exemplo, não por dinheiro, mas simplesmente porque elas gostam de ter outras pessoas ouvindo o que elas querem falar e respondendo a elas. Isso mostra uma coisa muito interessante sobre a natureza humana, que é que, mesmo que nós gostemos de ganhar dinheiro, no final do dia, ainda mais importante do que dinheiro, depois de um momento básico, é o amor. Nós queremos o amor do mundo.
EXAME.com: No Brasil, tem havido um aumento do número de ateus e agnósticos, segundo levantamentos recentes. A falta de fé pode tornar mais difícil lidar com o “desejo de status”?
de Botton:
 Eu sou um ateu, então eu não acho que a resposta seja nós nos voltarmos para a fé. Mas, sim, quando a religião declina, certas coisas realmente pioram do ponto de vista dessa ansiedade. Mesmo um rei, no Cristianismo, fica de joelhos diante de Jesus. Essa é uma ideia muito bonita e, uma vez que você se livra de Jesus, o que você tem? O que vai ser maior do que a humanidade? O perigo é: nada. O perigo é nós pensarmos “nós somos fantásticos. Nós temos Steve Jobs, que inventou o iPad”.
Nós nos adoramos e isso nos leva à loucura. Nós precisamos de momentos em que podemos fugir do narcisismo humano e olhar para outros lugares. É por isso que as pessoas hoje estão mais impressionadas com a natureza. Não é apenas uma questão ambiental, é também uma questão psicológica. Você olha para a natureza e pensa: isso é uma coisa que existe fora da humanidade. E ela é maravilhosa, porque ela não pensa em nós, assim como animais, árvores, estrelas, até mesmo crianças pequenas. Esses são exemplos de coisas que estão fora do sistema do dinheiro, fora do sistema do status, e elas são muito, muito relaxantes e necessárias para nossa alma.
EXAME.com: O senhor também diz que ninguém é independente e auto-suficiente. Onde é possível encontrar ajuda e conselhos para lidar com nossos problemas, dúvidas e ansiedade?
de Botton:
 Bem, o interessante é que o mundo moderno, onde nós temos tanto de tudo, que é tão bom em dar-nos carros, roupas e todo resto, quando diz respeito à nossa vida interior, a ajuda é quase como a Rússia nos tempos comunistas. É muito, muito má. O modelo mais sistemático que existe para a vida interior é provavelmente a psicoterapia, que no Brasil e no resto é ainda uma coisa menor. Acho que precisamos de ajuda, e minha esperança é que os empreendedores do futuro não pensem apenas no corpo e suas necessidades, mas também pensem na mente e em suas necessidades.
EXAME.com: Quais são as possíveis soluções para o “desejo de status”?
de Botton:
 O maior inimigo nesta situação é a solidão, paranoia, a sensação de que estamos completamente sozinhos. É muito vergonhoso sentir o “desejo de status”. Ele não é algo que você pode realmente admitir, não é fácil admitir a inveja de alguém. E, ainda assim, a inveja é enorme. Eu acredito que nós precisamos de alguns mecanismos para admitir isso, nós precisamos de amizades que são capazes de aceitar esse nosso lado, nós precisamos ser capazes de falar sobre isso.Todo problema é reduzido ao se falar sobre ele. E nós precisamos achar grupos de status que serão tolerantes e faça-nos sentir relativamente relaxados. No mundo moderno, nós somos jogados contra pessoas que realmente destroem nossa paz interior, suas ambições nos levam à loucura e, talvez isso não seja para nós. Talvez nós precisemos apenas perder alguns amigos. Meu conselho seria fazer alguns amigos e perder outros, para nos focarmos no que nós realmente queremos.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Os amáveis

Em nossa escalada pela montanha da elevação espiritual, na busca pela reforma interior, vamos hoje conhecer um novo degrau.  Quando Jesus fez o sermão da Montanha, uma de suas frases emblemáticas foi algo como felizes os amáveis, pois eles herdarão a Terra. No evangelho de Mateus (5:4), a frase literal seria “Bem-aventurados aqueles que são mansos, porque possuirão a Terra”. Um pouco mais para frente temos o seguinte versículo que complementa a frase acima (5:9): “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados de filhos de Deus”.
     Este degrau é um dos mais complicados para se alcançar, pois trata do combate aos sentimentos negativos mais comuns que temos, como a raiva, o ódio, o orgulho e a impaciência. Complicado porque neste mundo hostil em que vivemos não é nada fácil ser manso e pacífico. Sugere até uma irrealidade, como se tivéssemos que viver como Polyanas em um mundo cor de rosa.
     Porém, se pararmos para pensar um pouco percebemos que estes sentimentos negativos, por mais comuns que sejam, nos levam sempre ao desequilíbrio emocional. Por tabela, nos sentimos mal após a catarse. Neste momento, a razão que foi escanteada pela emoção, retoma o controle e nos mostra que aquela atitude não foi a mais adequada.
     Um padre da época primitiva da Igreja, quando o humanismo ainda era a tônica das mensagens eclesiais, percebeu que a chave para se ter o controle das emoções era a de treinar a busca incessante pela mansidão. Ou seja, era uma virtude que precisava ser adquirida. Nas palavras de Gregório de Nissa, “felizes aqueles que não cedem facilmente às moções da paixão da sua alma, mas que, por meio da moderação, preservam a calma interior; aqueles nos quais a razão, como uma rédea, freia os impulsos e não permite que a alma dispare descontroladamente em atos violentos”.
     Quem trilha este caminho com o coração e não apenas na aparência, pode conseguir mudanças interessantes no comportamento das pessoas com que interage, segundo diz o monge Anselm Grün. “Mansidão e amabilidade podem ter uma influência boa sobre a resistência dos colegas de trabalho....Ela (a mansidão) é como a água que amolece a pedra dura”.
     Anselm acredita que para conseguirmos chegar neste estágio precisamos primeiro ter compaixão interna. Ele ensina que pessoas que nunca estão satisfeitas consigo mesmas e, por tabela, com outros seres, jamais alcançarão a harmonia. O antídoto seria sermos menos rígidos com nós mesmos. Só assim teremos condições de estarmos em harmonia interior e com as demais pessoas. “O manso tem a coragem necessária para admitir tudo o que acontece em seu íntimo...Quando fica firme em sua mansidão, também no trato das pessoas, modificará a terra”.
     Para os espíritas kardecistas, o trecho  “herdarão a Terra” desta bem-aventurança teria o significado de que no futuro, quando nosso planeta deixar de ser um lugar de provas e expiações para se tornar um mundo de regeneração, os mansos e pacíficos, aqueles que cultivaram o amor e a caridade com o próximo, vão permanecer por aqui. Já as pessoas (espíritos) cujas vibrações estejam fora desta sintonia vão ser levadas para outro planeta e iniciarão nova jornada rumo à paciência e à mansidão.


Leia também
Bem-aventuranças: o sermão
Os pobres de espírito
Os tristes felizes
Os famintos

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Os tristes felizes

No sermão da Montanha, Jesus segue o seu rosário de bem-aventuranças. Já mencionamos os pobres de espírito no post anterior. Agora, a frase encontrada no evangelho de Mateus (5:4) é “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados”.  Uma versão mais moderna destas palavras seria algo como “Felizes os tristes, pois serão consolados”.
     De bate pronto, parece que estamos lidando com um Deus sádico que quer ver todos nós sofrendo. Isso não faz muito sentido se você acredita em uma divindade que nos quer bem, como Jesus cansou de pregar. Bom, se a leitura direta não é a mais adequada, qual seria então a interpretação apropriada?
     Se você for espírita, conhece a lei da ação e da reação, uma variação do carma. Simplificando, se em uma encarnação você foi uma pessoa que abusou de práticas pouco éticas e enveredou pelo mau caminho, na próxima você terá que fazer algum tipo de acerto de contas. Poderá, por exemplo, sofrer de alguma doença, viver sempre em dificuldades financeiras etc.
     Você vai padecer de tudo isso para ser testado a seguir em frente com resignação e sem tentar atalhos criminosos. Passando por essas provas com coragem e correção, você consegue melhorar, digamos, seu saldo cármico. Ou seja, você tem mais chances de sair do “Serasa espiritual”.
     Óbvio que seria mais fácil aceitar as pedras no caminho se soubéssemos que passamos por dificuldades nesta vida porque estamos pagando por males feitos no passado. Mas como desconhecemos isso, corremos o risco de levarmos esta prova para o lado negativo e seguir uma jornada não apropriada. É fácil ficar revoltado, perguntar por que comigo?, entrar em depressão  e até mesmo ir na direção do suicídio ou do crime.  Afinal, temos o tal do livre-arbítrio que nos permite escolher a estrada que queremos percorrer: a da dor ou a do amor.
     Por isso que a frase de Jesus diz que serão felizes os sofredores, pois serão consolados.  Estes vão passar por maus bocados na Terra, mas, se agirem corretamente, quando desencarnarem conseguirão se elevar espiritualmente.
     Na interpretação católica, a frase de Jesus ganha outra conotação, mas não muito diferente da dos espíritas na parte da resignação às dificuldades. O monge Anselm Grün, no livro Bem-aventuranças Caminho para uma vida feliz, explica  que “consolo é firmeza. Quem assume a tristeza em relação a sua vida não vivida, a suas carências e perdas, ganha nova determinação. Tem chão firme sob os pés. Consegue ficar forte em relação a si mesmo. Conquista uma posição sólida...e experimenta o apoio de Deus, que fica ao seu lado e o sustenta para que, vencendo  suas fraquezas, possa entrar em contato com o seu verdadeiro ser...”
     Portanto, diante dessas interpretações, nada de muitas lamúrias frente às dificuldades já que você pode estar pagando por um saldo negativo de vidas passadas e/ou se fortalecendo para alcançar a paz interior.

Leia também
Bem-aventuranças: o sermão
Os pobres de espírito
Os amáveis
Os famintos

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Os pobres de espírito

Já mencionei de leve em post anterior a interpretação para este trecho do Sermão da Montanha, também conhecido como o sermão das bem-aventuranças, já que Jesus sempre começava suas frases no discurso com "Bem-aventurados...". No caso específico que vamos tratar hoje, a passagem seria "Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus". Consta em Mateus, capítulo 5, versículo 3, ou, na simbologia bíblica, 5:3. Em algumas transcrições, troca-se pobres de por pobres em. Em Lucas, 6:20, o espírito desaparece da frase: "Bem-aventurados vós que sois pobres, porque vosso é o Reino de Deus!".
     Seja como for, a ideia central da mensagem aqui não é a de desqualificar o espírito. Rebaixá-lo como algo inferior. Ao contrário. A palavra "pobres" tem a conotação de pessoa humilde. Como explica Paulo Alves de Godoy no livro Os Quatro Sermões de Jesus, os orgulhosos preocupam-se com o mundo material e se acham superiores. Já os mais simples entendem esta questão como secundária e que o importante é a reforma íntima para alcançar a elevação no mundo espiritual.
     Alguns filósofos vão mais fundo na questão. O monge Anselm Grün cita dois deles em seu livro Bem-aventuranças. Caminho para uma vida feliz. São considerados pensadores místicos, por procurarem na época em que viverem, na Idade Média, uma abordagem mais humanística das palavras de Jesus. Para Mestre Eckhart, o pobre em espírito seria quem não quer nada, não sabe nada e não tem nada.Afinal, nada nos pertence, nem uma pessoa, nem nossa casa, nem nossa vida. Podemos desfrutar disso por um tempo, mas tudo foi emprestado. É uma maneira elegante de não dar a mínima para o acúmulo de bens. Afinal, você é livre e não precisa ficar preso na neurose da acumulação de coisas.
     Outro filósofo místico, Gregorio de Nissa, explicava que quem sem livrava da riqueza ficava mais leve para poder se elevar para o alto. A pobreza interior nos eleva a Deus, enquanto as posses nos empurram para baixo. Grün arremata todas essas considerações ao explicar que a "primeira bem-aventurança é um caminho para a liberdade interior e, assim, para a verdadeira felicidade." O mote aqui seria o desprendimento.
     E ele finaliza o capítulo contando a fábula alemã João Sortudo. O personagem ganha uma barra de ouro, mas por ser muito pesada, ele troca por um cavalo. Este por sua vez é muito bravo e João não consegue controlá-lo. Aí ele faz outra troca e tem agora uma vaca. Depois vem um porco, um ganso e uma pedra de amolar. Até que um dia esta pedra cai na água e ele não tem mais nada. Justamente nesta hora ele começa a dançar e cantar porque sua felicidade não depende de posses, prazeres  e sucessos. Está grato pela vida e feliz por ser capaz de desfrutar dela. A pobreza de espírito seria para Grün simplesmente viver, sem pretensão, aproveitar cada instante e estar grato por aquilo que existe. Só isso basta.
   
Leia também:
Compreendendo Jesus
Por parábolas
Bem-aventuranças: o sermão
Os tristes felizes
Os amáveis
Os famintos