quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Livro revela lado humano e menos mítico de Kardec


Biografia mostra os dilemas e angústias do codificador do espiritismo
 durante o trabalho de revelar a nova doutrina ao mundo

A história de Allan Kardec, francês que há 156 anos colocou no papel as instruções dos espíritos e organizou a doutrina espírita, merecia ser resgatada e contada com uma roupagem mais moderna. O jornalista Marcel Souto Maior estava com esta ideia na cabeça desde que escreveu As Vidas de Chico Xavier, que posteriormente serviu como base para o filme a respeito do mítico médium mineiro.

A tarefa era não só apresentar este francês nascido em Lyon, em 3 de outubro de 1804, mas desvendar o homem por trás do mito. Contar, prioritariamente, o intenso período de 13 anos em que Kardec, um cético assim como Marcel, compreendeu a importância da comunicação dos espíritos, iniciou o trabalho de codificação que resultou em cinco livros e arregaçou as mangas para consolidar e defender a recém-nascida doutrina.

Graças a isso, o perfil que emerge de Kardec, a Biografia é o de um homem com angústias e dilemas, centralizador e envolvido em desgastantes embates.

- Queria entender a transformação do professor cético a missionário de campanha. O que deu a ele tanta certeza sobre a existência e influência dos espíritos? A biografia é a história desta conversão. Uma saga pontuada por altos e baixos, com razão e emoção, surpresas e decepções, fraudes e revelações”, explicou o jornalista à imprensa no lançamento da obra.

A biografia aponta ainda que, assim como o famoso médium brasileiro, o precursor do espiritismo teve seu tempo totalmente tomado pelas demandas vindas do outro lado do véu. Os benfeitores espirituais não brincam em serviço e exigem dedicação total de seus parceiros encarnados.

Mas pelo menos os amigos no invisível são sinceros e avisam antes o tamanho da missão de cada um dos escolhidos.

- Caberá a você organizar e divulgar uma nova doutrina, capaz de revolucionar o pensamento científico, filosófico e religioso. Não esqueças que podes triunfar, como pode falir. Neste último caso, outro te substituirá...Previno-te que a tua missão é rude e não vai bastar publicar alguns livros e ir para casa. É necessário que te mostres no conflito, esclareceu o Espírito da Verdade, o mentor que iria acompanhar e auxiliar Kardec na longa caminhada em direção à nova doutrina.

Da mesma forma como Chico, Kardec topou o desafio. Em 1856, aos 54 anos, o professor  Hippolyte Léon Denizard Rivail iniciava a jornada de transformação que o levaria a se tornar Allan Kardec.
Pelas páginas escritas por Marcel, as mesas girantes, os diversos e controvertidos espetáculos mediúnicos na época, as irmãs Fox e os casos de materialização ganham vida. O leitor é transportado para aquele efervescente meio do século 19. Percebe ainda como a manifestação dos espíritos era assunto popular na sociedade francesa.

No entanto, o que para muitos era apenas diversão, para Kardec aquelas ações estranhas e, de certo modo, incompreensíveis, sugeriram algo a mais:

- Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente. O poder da causa corresponde à grandeza do efeito, analisava Rivail após observar com espanto as comunicações dos espíritos por meio das mesas girantes e das pancadas que respondiam às perguntas dos encarnados.

A biografia acompanha as conversas iniciais de Kardec com os espíritos.  Apresenta quem foram as primeiras médiuns que ajudaram o professor no contato com a espiritualidade, já que o codificador não possuía esta habilidade mediúnica.

No livro, a história é contatada de forma linear e objetiva, sem ser laudatória. Marcel mostra com muitas informações recolhidas de suas pesquisas e quatro viagens a Paris as angústias e temores de Kardec pelo tamanho e complexidade da tarefa que tinha pela frente.

Um dos medos do francês era ser enganado pelos espíritos. Daí a obsessão de fazer a diversos médiuns e espíritos as mesmas perguntas e garimpar a concordância das respostas. Afinal, para ele, era melhor rejeitar 10 verdades a publicar uma mentira.

- Observar, comparar e julgar, essa a regra que constantemente segui, dizia o racional Rivail.

Além de apresentar o Espírito da Verdade, mas sem revelar sua identidade, o autor da biografia faz uma interessante contextualização das outras entidades que colaboraram com Kardec, como São Luis e Erasto, de importantes médiuns, como a jovem Ermance Dufaux, e de personalidades da época que também mantinham seus contatos com o além, como o escritor Victor Hugo.

A biografia traz ainda o lado centralizador e obsessivo de Kardec. Temeroso em colocar a recém-nascida doutrina em perigo, ele decidia sozinho não só o que iria publicar nos livros, mas também como a sociedade espírita fundada por ele deveria agir. Dentro do mesmo princípio, ele mesmo era quem respondia as polêmicas surgidas, editava praticamente sozinho a Revista Espírita e ainda encontrava tempo para despachar a volumosa correspondência.

Justamente por ser um controlador nato, Kardec temia pelo futuro da doutrina quando desencarnasse. Marcel aponta as preocupações do codificador em saber quem seria o seu sucessor. Os espíritos, contudo, não revelaram o nome. Apenas diziam que esta pessoa já existia.

Marcel resolveu também criar este suspense no leitor e não menciona em nenhum momento a obra de Léon Denis, outro francês e que foi a grande referência à doutrina espírita após o falecimento de Kardec, ocorrido em 31 de março de 1869. Com sua oratória envolvente e livros que explicavam de forma didática o espiritismo, Denis consolidou os princípios da doutrina e a duras penas unificou o movimento.

Curiosamente, um mês depois que Denis desencarnou, em 12 de abril de 1927, Chico Xavier, aos 17 anos, fazia o primeiro contato com o espiritismo. Em junho, ele fundava o centro espírita Luiz Gonzaga, em Pedro Leopoldo, e, em 8 de julho, o médium mineiro participava de sua primeira psicografia. Enquanto a doutrina ganhava alento no Brasil, perdia força e ímpeto na França.

Apesar de não expor estes fatos no texto, Marcel traz outros casos curiosos, como a revolta das primeiras médiuns que levou ao rompimento com Kardec por não terem os nomes publicados no Livro dos Espíritos. Ilustra ainda o surgimento de cada um dos exemplares do Pentateuco espírita e detalha as diversas polêmicas em que Kardec e o espiritismo estiveram envolvidos na época. Uma história envolvente e que em breve deverá também ser atração nos cinemas.

Ficha técnica

Livro: Kardec, a Biografia
Autor: Marcel Souto Maior
Editora: Record
Número de páginas: 322